Em 1910, Henry Ford estabelecia a primeira planta dedicada exclusivamente à montagem final de automóveis. Dois anos depois ele já aplicava o conceito de linha de montagem, sem mecanização, à fabricação de motores, radiadores e componentes elétricos. E no começo de 1914, a Ford adotava a linha de montagem móvel e mecanizada para chassis.
Esse pequeno acontecimento da história culminou no lançamento do primeiro carro popular, o Ford Modelo T. Parafraseando Armstrong, este pequeno passo significou muito para a humanidade. E se os acontecimentos descritos no livro Admirável Mundo Novo (Editora Globo, 2001), de Aldous Huxley, tornarem-se reais, Ford será alçado ao posto de divindade universal.
A história do romance Admirável Mundo Novo se passa no ano de 632 d.F. (isso mesmo, depois de Ford). Os primeiros capítulos fazem um passeio pelo "Centro de Incubação e Condicionamento de Londres Central". O Diretor do Centro mostra a um grupo de estudantes Alfa Mais, todo o processo de incubação de condicionamento dos seres humanos.
Aqui forma-se um importante conceito que percorre todo o livro. A sociedade futurista de Huxley é segmentada em diversas castas (classes sociais), variando dos vigorosos e inteligentes Alfa Mais, até o pequenos e ignorantes Ípsilon Menos. Além da superioridade associada à inteligência e ao porte físico, existia uma distinção entre as castas por cores. Cada casta é condicionada a gostar de uma cor e detestar as demais.
Continuando a visita, os estudantes encontram o Sr. Henry Foster, que apresenta-lhes o Processo Bokanovsky, um dos principais pilares daquela sociedade. Nesse processo, os seres humanos são gerados a partir de brotos, divididos diversas vezes consecutivas, ou seja, clonagem. Formam-se, então, milhões de gêmeros idênticos. O princípio da produção em série de Ford aplicado à biologia.
E aqui vem a parte mais sacana da história. O Sr.Foster explica aos estudantes que o pseudo-sangue circula mais devagar nas castas mais baixas, por conseguinte, passa pelos pulmões a intervalos mais longos; portanto, fornece menos oxigênio ao embrião. "Nada como a penúria de oxigênio para manter um embrião abaixo do normal".
A conseqüência disso? "O primeiro órgão afetado é o cérebro. Em seguida, o esqueleto. Com setenta por cento de oxigênio normal, obtinham-se anões. Com menos de setenta por cento, monstros sem olhos". Será que no futuro será assim mesmo? Ou será que já vivemos essa realidade. Ouvi dizer que, bem nutridos, os filhos dos ricos crescem inteligentes e fortes, enquanto os pobres...
Outra forma de condicionamento chamou minha atenção. "Túneis quentes alternavam-se com túneis resfriados. Quando chegaravam a ponto de serem decantados, os embriões tinham horror ao frio. Ficavam predestinados a emigrarem para os trópicos, a serem mineiros e operários de fundição. Mais tarde, seu espírito seria formado de maneira a confirmar as predisposições do corpo."
Isso significa que os caras condicionam as pessoas de tal modo que eles se dão bem com o calor. Morrem felizes debaixo de uma lua de 40 graus. Fiquei com uma má sensação. Será que no futuro vai ser assim? Eu, por exemplo, moro numa terrinha que todo dia faz 45 graus brincando. E sou feliz! Putz, aposto que passei por um desses tuneizinhos de merda!
"É o segredo da felicidade e da virtude: amarmos o que somos obrigados a fazer. Tal é a felicidade de todo condicionamento: fazer as pessoas amarem o destino social de que não podem escapar". E pensar que Huxley escreveu esse livro há 75 anos. Se o cara estivesse vivo, seria um astro das palestras de auto-ajuda. Gostar do que faz! Gostar do que faz! Gostar do que faz! Um dia eu acredito nisso, pode deixar.
Caminhando um pouco mais e os estudantes chegam aos berçários, mais precisamente às "Salas de Condicionamento Neopavloviano". A idéia aqui é condicionar os bebês a odiar livros e flores. Os pobrezinhos são submetidos à cerca de 200 repetições de um exercício que envolve choques elétricos e muito barulho.
O Diretor explica: "Elas crescerão com o que os psicólogos chamavam de um ódio 'instintivo' aos livros e às flores. Reflexos inalteravelmente condicionados". Um dos estudantes ficou na dúvida sobre as flores. Por que se dar ao trabalho de tornar psicologicamente impossível aos Deltas o amor às flores? A resposta do Diretor é bem clara: "As flores do campo e as paisagens têm um grave defeito: são gratuitas."
Na sociedade criada por Huxley, os Adminsitradores abominam tudo que é gratuito. Veja o caso dos esportes. Todos exigem o emprego de aparelhos complicados, fazendo com que as pessoas consumam artigos manufaturados. Nessa parte do livro, parei um pouco para refletir. Será que no futuro vai ser assim? Quando criança eu lembro que bastava uma bola velha e um pedaço de rua para a molecada fazer a festa. Hoje os meninos jogam com a bola da Copa, em campos de grama sintética, calçados em suas chuteiras Nike e vestidos em seus uniformes oficiais. Futuro, sei...
Outro importante pilar dessa sociedade futurista é a hipnopedia, ou, princípio de ensino durante o sono. Na época que Huxley escreveu Admirável Mundo Novo, a hipnopedia havia sido contestada duramente pelos cientistas. Mas no livro, o Diretor do Centro de Incubação e Condicionamento, muda o foco e diz que a hipnopedia não serve como educação intelectual, mas sim como educação moral.
Tanto que, independentemente de castas, todos participavam do "Curso Elementar de Consciência de Classe". Durante o sono as pessoas passavam por 40 a 50 vezes repetições de lições morais antes de acordar. Os Administradores consideravam a hipnopedia, a maior força moralizadora e socializante de todos os tempos.
Logo depois dessas explicações iniciais, começa o romance propriamente dito. O personagem principal é Bernard Marx, um Alfa insatisfeito com o mundo onde vive e discriminado por ser fisicamente diferente dos membros de sua casta.
Segundo o Wikipédia, o sobrenome de Bernard Marx faz uma referência ao Karl Marx (que foi um dos percursores do socialismo científico, uma escola de pensamento econômica que se assemelha, em alguns pontos, com a sociedade retratada com o livro).
Em certo momento da história, Bernard viaja com sua amiga Lenina para Malpaís, uma espécie de "reserva histórica" (semelhante às atuais reservas indígenas). A reserva possui cerca de 60 mil índios e mestiços, absolutamente selvagens, sem comunicação com o mundo civilizado. Nessa reserva os habitantes aindam conservavam hábitos e costumes repugnantes, como o casamento, famílias, Cristianismo etc.
É importante abrir um parênteses. No livro, palavras como "mãe", "pai", "família", "amor", são verdadeiros absursos. Palavras obscenas que ninguém pronuncia. E não é difícil entender porquê. Como as pessoas são criadas em laboratório, nenhuma dessas palavras tem mais sentido, tornando-se inaceitáveis no mundo civilizado deles.
Nessa reserva, Bernand e Lenina encontram Linda, uma mulher oriunda de sua civilização, e o filho dela, John. Bernard vê uma possibilidade de conquista de respeito social pela apresentação de John como um exemplar dos selvagens à sociedade civilizada.
A última parte do livro desenvolve-se a partir das experiências do "selvagem" John, vivenciando os costumes desse "Admirável Mundo Novo". Ele acaba descobrindo que essa tal sociedade não é tão perfeita quanto ele acreditava. E para nós? O que é um mundo perfeito?
Num mundo perfeito, todos seriam jovens! Pois em Admirável Mundo Novo isso é possível. Os Administradores mantém artificialmente as secreções internas das pessoas no nível de equilíbrio da juventude. Além disso, não deixam cair a taxa de magnésio e cálcio abaixo do quer era aos trinta anos. Fazem transfusão de sangue jovem e mantém o metabolismo estimulado permamentemente.
Num mundo perfeito, o sexo é liberado! Exatamente como acontece em Admirável Mundo Novo. Mais do que isso, o adultério é incentivado como uma obrigação, relações monogâmica são proibidas, todos são de todos [ou seria ninguém é de ninguém?].
Num mundo perfeito, não existem sogras! Admirável Mundo Novo foi além, acabou com os pais, as mães, as esposas, as amantes, os filhos, a família. A idéia é que não exista mais ninguém para encher o saco com emoções violentas.
Nesse Admirável Mundo Novo ninguém vive sozinho, o mundo é estável, as pessoas são felizes, nunca desejam o que não podem ter, sentem-se bem, estão em segurança, nunca adoecem, não têm medo da morte, vivem na ditosa ignorância da paixão e da velhice. Nesse mundo perfeito, o sentimento religioso é supérfluo. Afinal, para que serve a religião quando se já está no paraíso?
Por fim, sempre há o soma para acalmar os excessos, uma droga legalizada que permite uma fuga da realidade. "Tomam-se dois ou três comprimidos de meio grama e pronto. Todos podem ser virtuosos agora. Pode-se carregar consigo mesmo, num frasco, pelo menos a metade da própria moralidade. O Cristianismo sem lágrimas, eis o que é o soma."
Eu cresci cercado pelas idéias de Aldous Huxley. Para onde olho, vejo Huxley. Zé Ramalho é um dos músicos que mais gosto. Um de seus maiores sucessos é "Admirável Gado Novo", um passei criativo pela obra de Huxley. Sou fanático por Matrix, uma releitura moderna de Admirável Mundo Novo. Isso sem contar o inúmeros filmes que usam as idéias de Huxley como pano de fundo de suas histórias.
Navegar pelo Admirável Mundo Novo significa acessar a fonte de todas as influências, significa conversar com o Arquiteto, significa redescobrir caminhos, significa encontrar atalhos, significa apertar o botão que reseta essa "Matrix" cotidiana. Admirável Mundo Novo é isso, a materialização da arrogância humana.
quinta-feira, 28 de dezembro de 2006 às 00:50
Admirável Mundo Novo: prepare-se para apertar o botão que reseta a "Matrix" cotidiana
Admirável Mundo Novo: prepare-se para apertar o botão que reseta a "Matrix" cotidiana
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