Dúvida: o prometido duelo de titãs, não passa de fumaça inquisitiva

Estudei a segunda metade do ensino fundamental no Colégio São Francisco de Sales, o Diocesano. A vida numa instituição de jesuítas tinha suas vantagens: a educação era mais social do que técnica, os passeios de integração eram divertidos, havia incentivo à prática esportiva e uma ampla infra-estrutura. Evidentemente éramos obrigados a participar das missas, palavrões não eram tolerados, precisava acreditar em Deus e respeitar os professores. E uma das figuras mais importantes desse período foi o Padre Florêncio. Bastava a ponta de sua longa barba branca aparecer no corredor pra a galera sair correndo pra sala de aula. Todo mundo ficava sentadinho esperando o mestre passar, pois peitoril não é bundaril.

Lembrei muito do Padre Florêncio assistindo Dúvida (Doubt, 2008). Quando a Irmã Aloysius (Meryl Streep) passa pelo corredor da escola católica nova-iorquina St. Nicholas, ninguém dá um só piu. Nem mesmo o moderninho Padre Flynn (Philip Seymour Hoffman) ousa desafiá-la. A Irmã dirige a escola com mãos de ferro, impondo-se através da coação e disciplina. Mas os rígidos costumes aos pouco vão sendo quebrados, a escola acaba de aceitar seu primeiro aluno negro: Donald Miller (Joseph Foster). O garoto se torna coroinha do Padre Flynn e a confusão começa. A professora Irmã James (Amy Adams) descobre que o menino bebeu o vinho quando estava na igreja. A questão é: ele bebeu por conta própria ou o padre estava tentando embriagar o moleque?

Dúvida gira em torno da questão: o padre Flynn é ou não pedófilo? Mesmo que boa parte do enredo trate disso, o ator Philip Seymour Hoffman desviou o foco em entrevista à Folha de S. Paulo: "A igreja parou de fazer missas em latim, o padre passou a se dirigir ao público para falar. O filme é sobretudo sobre isso. Há um padre que representa a igreja progressista, e uma freira que não quer que a igreja mude. E isso é discutido por meio de uma acusação". De fato cada sermão proferido pelo padre parece capítulo da novela das oito. Posto em discussão na mesa das freiras, as palavras ganham significados diversos.

Por outro lado, talvez o ator esteja tentando evitar a polêmica, afinal, pedofilia na Igreja Católica ainda é um tabu. Basta assistir ao documentário "Sex crimes and the Vatican", da BBC. Nele a rede britânica apresenta uma investigação sobre a pedofilia na Igreja. Chama atenção o fato de que mesmo quando os padres assumem o crime, o Vaticano sempre dá um jeito de escondê-los. A prática mais comum é realocá-los de paróquia em paróquia até o escândalo abafar. Segundo consta, o Cardeal Joseph Ratzinger, o atual Papa Bento XVI, chegou a compor um manual ensinando a esconder os pedófilos e desqualificar as vítimas.

Com um pepino desses na mão, o diretor John Patrick Shanley soube conduzir Dúvida de forma bem sutil, sem partidarismos até o último segundo de projeção. Pra mim, mais importante do que descobrir a inocência do padre é analisar o comportamento da Sra. Miller (Viola Davis), mãe do coroinha. Impressionante a forma como ela tratou o caso. Na visão dela, vale a pena deixar o menino ser "estuprado" em troca de uma boa faculdade. Incrível a repercussão que um pensamento desses pode causar. Até mesmo a fria Irmã Aloysius ficou chocada.

O tema é forte, mas o filme é chato. Ponto alto só no duelo de interpretações entre os premiados Philip Seymour Hoffman e Meryl Streep. Ainda assim, Dúvida parece um longo sermão cansativo e enfadonho. O ambiente sacro também não ajuda em nada. Faltou mistério, suspense, pistas. Tudo ficou muito nas entrelinhas, superficial demais. Mas vale a pena esperar até a última cena: a freira coercitiva se derramando em lágrimas diante de seus segredos inconfessáveis. O que deveria ser um duelo de titãs, não passa de fumaça inquisitiva.

Confira o trailer legendado clicando no botão play da imagem abaixo.

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