terça-feira, 14 de fevereiro de 2006 às 00:58

1984: o Grande Irmão zela por ti

1984O livro chama-se 1984, ou, originalmente, "Nineteen Eighty-Four" (Mil Novecentos e Oitenta e Quatro). Esse romance foi publicado pela primeira vez em 1949 pelo escritor inglês George Orwell, que na realidade é o pseudônimo de Eric Arthur Blair. Mas vamos chamá-lo de Orwell mesmo, afinal poucas pessoas, mesmo as mais próximas, conheciam o seu verdadeiro nome.

1984 representa o mais famoso dos livros de George Orwell. No enredo, Orwell desenvolve uma metáfora pessimista do pós-guerra. O futuro da humanidade é dominado pelo totalitarismo. Orwell escreve: "Se queres uma imagem do futuro, pensa numa bota pisando um rosto humano, para sempre".

No livro George Orwell mostra-se desencantado com o socialismo stalinista, causa que ele defendia na luta contra o nazi-fascismo. Aliás, muitos dizem que 1984 é "o grande clássico da desilusão de um esquerdista com o comunismo". Outros falam que Orwell colocou o regime de Stalin sob "execração universal". De certo que o livro acalorou o debate ideológico entre comunistas e democratas, dividindo ainda mais o mundo intelectual na época da guerra fria.

Vamos ao romance propriamente dito. A novela narra a epopéia intelectual do cidadão Winston Smith. Ele vive num país dominado por um partido político totalitarista chamado Ingsoc. O líder desse partido é o Grande Irmão (Big Brother). O Grande Irmão é uma espécie de deus vivo. Em todos os lugares da cidade há um cartaz com a foto dele e uns dizeres onde se lê: "O Grande Irmão Zela Por Ti" (Big Brother is Watching You). Sinalizando que tudo que acontece na sociedade ele toma conhecimento. Ele consegue ser onipresente com a ajuda das Teletelas (uma espécie de televisão de mão dupla). Elas estão por toda parte. Sua função é espionar as pessoas e vincular mensagens e músicas de apologia ao Grande Irmão.

Na descrição de Orwell, o Grande Irmão "era uma dessas figuras cujos olhos seguem a gente por toda parte, [...] de cabelos e bigodes negros, cheio de força e de misteriosa calma, [...] rosto pesado e protetor. Mas que espécie de sorriso se ocultava sob o bigode negro?".

Nesse lugar é proibido demonstrar sentimentos. As pessoas não podem, por exemplo, escrever o que sentem. Winston, logo no início do livro, quebra essa regra do Partido, seu primeiro de muitos delitos que viriam. Ele compra um diário e começa a redigir tudo que acontece no seu dia-a-dia. Expõe seus sentimentos e suas frustrações. Uma das passagens mais doentias do livro ocorre durante as "sessões de ódio" promovidas pelo Grande Irmão. Nesses momentos todos na cidade postam-se diante das Teletelas para extravasar suas emoções de ódio e fúria. No painel aparecia a imagem dos inimigos do Partido, geralmente era Emanuel Goldstein, líder de uma suposta aliança rebelde.

O enredo continua através de uma narrativa envolvente, até Winston conhecer Júlia. Essa é a única parte "ruim" do livro. Começa a ficar um conto de amor com toques melodramáticos. Mas é por pouco tempo, logo Winston está de volta com seus pensamentos desafiadores. A medida que Winston vai se envolvendo com Júlia, suas ações vão ficando mais ousadas. É justamente aí que Winston começa a se perder.

Winston conhece O'Brien, um membro do Partido Interno. Ele acredita que seu novo amigo pertence a Fraternidade que age clandestinamente contra o Partido. Mas Winston e Júlia são traídos pelo próprio O'Brien. Presos e torturados. A partir daí começa a ser respondidas todas as questões que o leitor se fez durante todo o livro. Um diálogo excitante entre Winston e O'Brien chega ao clímax. O'Brien conduz um martírio físico e psicológico. Winston cede até perder toda sua capacidade cognitiva.

Além do ótimo romance, o livro permite uma série de análises. Uma delas é a estrutura social. São três classes distintas. A elite, formada pelos ricos membros do Partido Interno. A classe média, formada pelos trabalhadores do Partido Externo. E os Proles, representando o povão, massa mais volumosa da população.

A pergunta é: como controlar os proles diante de tamanhas injustiças daquele universo? Para os membros do Partido isso era fácil. Tudo se dava com o "trabalho físico pesado, o trato da casa e dos filhos, as briguinhas com a vizinhança, o cinema, o futebol, a cerveja e, acima de tudo, o jogo. Mantê-los sobre controle não era difícil. [...] Como dizia o lema do Partido: Os proles e os animais são livres". Percebes que não é diferente da nossa realidade?

E como acabar com a mais forte das instituições, a família? Aí é que está, o Partido não queria acabar com a família, pelo contrário, ele incitava os pais a "gostar dos filhos quase à moda antiga, enquanto as crianças eram sistematicamente atiradas contra os pais, e ensinada a espioná-los e a denunciar os seus desvios. Dessa forma a família se tornava uma extensão da Polícia do Pensamento". Simples e assustadoramente eficiente.

Restava uma coisa, o passado. Não há como mudar o passado, em tese. Mas o Partido achou uma solução, "todos os registros foram destruídos ou falsificados, todo livro reescrito, todo quadro repintado, toda estátua, rua e edifício rebatizados, toda data alterada. E o processo continua, dia a dia, minuto a minuto. A história parou. Nada existe, exceto um presente sem-fim no qual o Partido tem sempre razão. A razão mais importante para o reajuste do passado é a necessidade de salvaguardar a infabilidade do Partido. [...] A mutabilidade do passado é o dogma central do Ingsoc".

Mas e a "realidade"? Essa é imutável. Dois e dois sempre serão quatro!!! Na lógica do Partido não é bem assim. Para eles "qualquer coisa podia ser verdade. Eram tolices as chamadas leis naturais. Era bobagem a leia da gravidade. Se alguém quisesse, poderia flutuar no ar como uma bolha de sabão. Se alguém pensa que flutua no ar, e se eu simultaneamente pensar que o vejo flutuando, então a coisa de fato acontece". Não entendeu? Assista ao filme Matrix.

Como todos os demais escritores da distopia, Orwell era um pessimista que viu o futuro desesperançado. O Estado moderno, particularmente os de regime socialista, o do impessoal Grande Irmão, havia desenvolvido tamanha capacitação de controle sobre o coração e a mente dos indivíduos. Para ele era impossível pô-lo abaixo. Mas a história mostrou que ele estava errado.

George Orwell não foi capaz de imaginar que em 1989, 41 anos após o seu livro, o Estado que ele tanto combatia, seria destruído pela Prole. A mesma massa trabalhadora, herdeira do Grande Irmão, insurgiu-se nas ruas de Gdansk, de Varsóvia, de Berlim, de Praga e de Moscou, e pôs um basta naquilo tudo.

Irônico e ao mesmo tempo eterno. 1984 é um clássico para essa e futuras gerações. Uma obra-prima que influenciou e continuará influenciando os rumos de nossas relações sociais de poder e hierarquia. Nota 5/5

Outros posts sobre o assunto:
Comentários
0 Comentários

0 [+] :

Postar um comentário

Related Posts Plugin for Blogger...