Aos poucos fui percebendo o nome desse fenômeno: Heath Ledger. O mundo do entretenimento ficou chocado com a notícia da morte do jovem ator de apenas 28 anos. O corpo foi encontrado em seu apartamento em Nova York na tarde do dia 22/01/08, fatalidade causada por superdosagem de remédios para dormir. O que se viu a partir daí foi um debate sobre a influência que a interpretação do vilão Coringa teria tido sobre sua morte. Coringa matou Heath Ledger? Paralelamente começou a surgir uma campanha para que o ator neozelandês concorra postumamente ao Oscar 2008, fato que seguramente iria gerar um maior apelo da mídia em relação à cerimônia de entrega do prêmio.
No primeiro fim de semana após a estréia mundial, Batman desbancou Homem-Aranha nas bilheterias norte-americanas. Somente nos três primeiros dias em que esteve em cartaz nos cinemas, O Cavaleiro das Trevas arrecadou cerca de 155,3 milhões de dólares em ingressos vendidos nos Estados unidos e no Canadá, ultrapassando os 151,1 milhões de dólares com "Homem-Aranha 3" ao longo do fim de semana de estréia. Pelo menos foi isso que informou a distribuidora Warner Bros. Pictures ainda no domingo.
Assim como os números, o filme também impressiona. Batman definitivamente não é um programa para crianças. Acho que os pais que levaram seus filhos menores de 16 anos estão arrependidos. Batman - O Cavaleiro das Trevas é um filme que mexe com os segredos mais bem guardados da psique humana. Tudo aquilo de ruim que tentamos esconder na sombra de nossa imagem pública, O Cavaleiro das Trevas revela, ridiculariza, ateia fogo e se embriaga com nosso medo. É bem verdade que nos quadrinhos o Homem-Morcego nunca foi um herói normal, daqueles com superpoderes e uma cartilha ética debaixo do braço. Ele sempre soube criar suas próprias regras.
Batman - O Cavaleiro das Trevas é perverso do início até o fim. O filme começa com sol a pino. Gotham City brilha enquanto assaltantes com máscaras de palhaço roubam um grande banco. Bastam poucos segundos para descobrirmos que o Coringa (Heath Ledger) está por trás da ação. Mais do que dinheiro, o vilão deseja notoriedade. Muito boa a primeira aparição, porém, é na seqüência seguinte que Coringa conquista o público. O ar debochado com que enfrenta todos os chefões da máfia de Gothan arranca riso de todos no cinema.
Coringa e deboche são duas palavras que se confundem. O melhor exemplo disso é a cena do interrogatório conduzido pelo Batman. O então prisioneiro Coringa no papel que mais gosta: brincar com a vida das pessoas. Apanhando e rindo do desespero do Homem-Morcego. Excepcional atuação. Amoral Coringa, um sujeito sem remorso, culpa ou piedade, um vilão que aprecia o sabor da morte, pois é na iminência dela que as máscaras caem e se pode conhecer a verdadeira face das pessoas.
Coringa é tão louco que queima dinheiro. O que representa isso? Que vilões devem desejar mais do que simplesmente grana? Provavelmente. Note, porém, que essa estratégia faz de Coringa uma carta aleatória no baralho. Todo bandido que busca dinheiro obedece a uma lógica matemática, Coringa não. O vilão deseja apenas grana suficiente para comprar dinamite, gasolina e pólvora, ingredientes suficientes para provar que o mais incorruptível dos cidadãos não presta. Coringa representa o caos, é ele quem faz o circo pegar fogo. Destaque para cena em que o Homem-Risada aparece vestido de enfermeira. Impagável.
Que Coringa é louco, todo mundo já sabe, mas ele trabalha com armadilhas mortais bem interessantes. Impossível não lembrar da Teoria dos Jogos, principalmente o Dilema do Prisioneiro: dois suspeitos, A e B, são presos pela polícia. A polícia tem provas insuficientes para condená-los. Porém, separando os prisioneiros, oferece a ambos o mesmo acordo. Se um dos prisioneiros, confessando, testemunhar contra o outro e esse outro permanecer em silêncio, o que confessou sai livre enquanto o cúmplice silencioso cumpre 10 anos de sentença. Se ambos ficarem em silêncio, a polícia só pode condená-los a 6 meses de cadeia cada um. Se ambos traírem o comparsa, cada um leva 5 anos de cadeia.
Cada prisioneiro faz a sua decisão sem saber que decisão o outro vai tomar, e nenhum tem certeza da decisão do outro. A questão que o dilema propõe é: o que vai acontecer? Como o prisioneiro vai reagir? O Dilema do Prisioneiro é um problema da Teoria dos Jogos, um exemplo claro de um problema de soma não nula. Neste problema, como em outros muitos, supõe-se que cada jogador, de modo independente, quer aumentar ao máximo a sua própria vantagem sem lhe importar o resultado do outro jogador.
O resultado desses jogos é o que menos importa ao Coringa, o que vale é a diversão. E justamente nessa "diversão" – acompanhada com entusiasmo pela platéia – que reside meu medo. A cada gracinha o cinema vinha abaixo, rindo das atrocidades do Coringa. A morte tem graça? A crueldade é divertida? Heath Ledger conseguiu descobrir o tempero certo dessa brincadeira e fez da morte uma piada. O ator acabou apelando aos remédios para desencarnar o perturbador personagem. E de certa forma conseguiu! A questão é: alguém terá coragem de substituí-lo num próximo filme? O público aceitará um novo Coringa?
Apesar das muitas vitórias, o palhaço também engole alguns dissabores em Batman - O Cavaleiro das Trevas. O resultado de um de seus jogos acaba zero a zero, com todo mundo ganhando. Inclusive, numa seqüência envolvendo dois barcos de passageiros, o personagem mais medonho toma uma atitude que extrapola todos os modelos ético-comportamentais pré-concebidos. O que o autor tentou nos dizer? Que existe esperança nos seres humanos? Que o lado bom de cada um é mais forte que o lado ruim? Não sei. Acho que teria sido mais legal uma catástrofe no lado dos bonzinhos causada por eles próprios. Acho que a mensagem ressoaria mais alto.
Batman - O Cavaleiro das Trevas não se equipara com outros grandes filmes de ação quando se fala de Efeitos Especiais. Porém, confesso nunca ter visto uma cena de tombamento de caminhão como mostrado no filme. Todos na platéia soltaram aquele ohhhhh... Some-se a isso uma bela edição de som, tendo conseguido deixar o ambiente nervoso e apavorante, causando angústia a cada tic-tac das armadilhas do Coringa. Eu gostei especialmente do trabalho de maquiagem feito no vilão Duas-Caras, o rosto ficou parecendo um zumbi de "Resident Evil".
Por falar nesse novo vilão, O Cavaleiro das Trevas soube trabalhar muito bem a dinâmica no uso dos três rivais: Espantalho, Coringa e Duas-Caras. Mas o resultado individual desse último não foi bem o que eu esperava. O ator Aaron Eckhart convence como Harvey Dent, promotor de Gotham City, novo rosto da lei e da ordem, um herói que não precisa usar máscaras para combater o crime, mas como Duas-Caras ficou devendo. Achei o processo de conversão do mocinho em vilão muito ruim, rápido demais. Em nenhum instante você acredita na maldade do personagem.
Na mesma medida, foi pequena a participação dos mafiosos. No precedente "Batman Begins" (2005) os chefões foram melhor aproveitados. Também acho que a série perdeu com a saída de Kate Holmes. Pra mim a mulher do Tom Cruiser é mais atriz que Maggie Gyllenhall, principalmente para interpretar Rachel Dawes, a mulher entre Bruce Wayne e Harvey Dent. Além disso, achei sem sentido o rapto do empresário em Hong Kong, sua participação na história é superficial demais. Pior só o patético trabalho desenvolvido pela SAWT de Gotham City, um verdadeiro desastre, não conseguem sequer transferir um preso, ridícula a ação da polícia.
O final é muito bom, ao invés de terminar com o clichê do vilão sendo preso e mocinho saindo na capa do jornal, Batman - O Cavaleiro das Trevas optou por colocar o vilão sendo alçado à categoria de herói-mor e o nosso Homem-Morcego sendo perseguido por cães, caçado como um animal, um criminoso. Pois como diria o grande Harvey Dent: "Ou se morre como herói, ou se vive o bastante para se tornar o vilão". Naturalmente, a primeira sensação quando a luz do cinema acende é de melancolia, um resquício do pavor causado pelo "defunto" Coringa. Afinal, como pode um simples homem causar tanto medo? Talvez essa pergunta nunca encontre resposta, principalmente quando se chega ao ponto de discutir se Batman é um herói ou guardião.
Confira o trailer legendado clicando no botão play da imagem abaixo.
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