Alice - Edição Comentada (Editora Jorge Zahar, 2002), contempla dois livros: Aventuras de Alice no País das Maravilhas (1865) e Através do Espelho e o que Alice Encontrou por lá (1872). Escrito pelo britânico Lewis Carroll (pseudônimo do matemático Charles Lutwidge Dodson), com ilustrações originais de John Tenniel e notas do especialista Martin Gardner, esse volume permite ao leitor descobrir as inúmeras mensagens escondidas atrás de um inocente livro infantil.
Porém, Gardner alerta de saída que há algo de insensato numa Alice comentada. O estudioso cita que em 1932, no centésimo aniversário do nascimento de Lewis Carroll, Gilbert K. Chesterton expressou seu "medo terrível" de que a história de Alice já tivesse caído sob as mãos pesadas dos acadêmicos e estivesse se tornando "fria e monumental como um túmulo clássico". Segundo ele, "não só a apanharam e a fizeram estudar lições; foi forçada a infligir lições a outros. Alice agora não é só uma aluna como uma professora".
Alice não faz sucesso somente em sala de aula, ela constantemente tem aparecido em filmes, livros, músicas. A Trilogia Matrix, dos irmãos Wachowski, é uma das produções que melhor tiraram proveito dos personagens de Lewis Carroll. As diversas referências mostradas no filme serviram de combustível para alimentar debates sobre realidade e ilusão. O fato, segundo Gardner, é que assim como Homero, a Bíblia e todas as outras grandes obras de fantasia, os livros de Alice prestam-se facilmente a qualquer tipo de interpretação simbólica – política, metafísica ou freudiana.
Uma boa maneira de ilustrar a riqueza desse debate é citar a discussão sobre loucura entre o Gato de Cheshire e Alice. O bichano diz que todos no "País das Maravilhas" são loucos, inclusive Alice. Lewis Carroll tenta representar nesse trecho que o sonho tem seu próprio mundo e com frequência é tão real quanto o nosso. Esse é um dos temas mais recorrentes nas indagações de Sócrates, que no diálogo platônico "Teeteto" diz: "Como podes tu determinar se nesse momento estamos dormindo, e todos os nossos pensamentos são um sonho; ou se estamos despertos, e conversando com um outro em estado de vigília?"
O problema é que muitos fãs de Alice ficam tão obcecados em descobrir lógica em cada palavra, que muitas vezes esquecem que o livro é apenas uma história infantil. Gardner cita como exemplo a semelhança entre versos nonsense e a pintura abstrata. "As palavras que Carroll usa podem sugerir significados vagos, como um olho aqui e um pé ali numa abstração de Picasso, ou podem não ter absolutamente sentido algum – um mero jogo de sons agradáveis como o jogo de cores não-objetivas numa tela".
A história de Alice se originou numa "tarde dourada" de 1862, quando Lewis Carroll fazia um passeio de barco no rio Tâmisa com sua amiga Alice Pleasance Liddell (com 10 anos na época) e suas duas irmãs. Lá ele começou a contar uma história que deu origem à atual. A menina pediu-lhe que ele lhe escrevesse um conto. Carroll atendeu ao pedido e em 1864 ele a presenteou com um manuscrito. Mais tarde ele publicou o livro e mudou a versão original, acrescentando as cenas do Gato de Cheshire e do Chapeleiro Louco.
Há muita coisa por trás desse simples acontecimento, não quero entrar em detalhes polêmicos. Chamo atenção apenas para o jogo de letras entre "Lewis Carroll" (pseudônimo do escritor) e sua musa infantil "Alice Liddell". Preste atenção no cumprimento dos nomes, nas posições das vogais, consoantes e letras duplas no último nome. Outro detalhe: considere as consoantes iniciais de "Dear Lewis Carroll" (Querido Lewis Carroll). Perceba que de trás para frente são as iniciais de "Charles Lutwidge Dodgson" (nome real do escritor).
Alice é recheado desses trocadilhos, enigmas lógicos e referências à vida pessoal do autor. Chapeleiro Louco, personagem mais legal do livro, é dono da famosa adivinhação feita à Alice: "Por que um corvo se parece com uma escrivaninha?". Ela pensou, pensou, pensou e desistiu. "Qual a resposta?", perguntou a curiosa menina. "Não faço a mínima idéia", disse Chapeleiro Louco na maior simplicidade do mundo. É por essas e outras, reforço o que disse Gardner, que as crianças de hoje se sentem aturdidas e às vezes apavoradas pela atmosfera de pesadelos dos sonhos de Alice.
Ainda assim, é através dos olhos dessa criançada que reside o melhor de Aventuras de Alice no País das Maravilhas. Livre do paranóico calhamaço das notas explicativas, o leitor pode sentir o prazer de mergulhar com Alice na toca atrás do Coelho Branco, sem nem pensar de que jeito conseguiríamos sair depois. Através do Espelho e o que Alice Encontrou por lá, continuação da obra original, representa um jogo de xadrez em que Alice (seis meses mais velha) terá que tornar-se rainha e vencer a partida. A história perde em paixão, mas ganha em qualidade inventiva.
Quando Alice se joga através do espelho, tudo fica invertido. Num certo sentido, diz Gardner, "o próprio nonsense é uma inversão sanidade-insanidade. O mundo usual é virado de cabeça para baixo e de trás para frente; torna-se um mundo em que as coisas tomam todos os rumos, menos os esperados. Estreitamente relacionado com o humor que Carroll extraía da inversão é o humor que extraía da contradição lógica. Comem-se biscoitos secos para matar a sede; um mensageiro sussurra aos gritos; Alice corre tão depressa quanto pode para ficar no mesmo lugar".
Só mesmo numa edição comentada para percorrer sem medo esse abstrato quebra-cabeça vitoriano. Mas para quem não tem tanta paciência, a Disney anunciou para março de 2010 o lançamento de Alice no País das Maravilhas em versão 3-D. O filme contará com direção de Tim Burton e terá Johnny Depp como Chapeleiro Louco. Veja o que Burton disse ao site Sci-Fi Wire: "Nunca vi uma versão de Alice em que eu sentisse que toda a obra original foi traduzida na tela. É uma série de aventuras esquisitas, e tentar fazê-las funcionar como filme será interessante. As histórias [de Alice] são como drogas para menores, sabe?"
Por essas e outras que Alice é uma das obras que mais tiveram adaptações no cinema, TV e teatro. Mas País das Maravilhas e Através do Espelho sempre funcionarão melhor como livros infantis. É no papel amarelado que Alice têm sua imortalidade assegurada. Somente na tranquilidade de casa podemos – junto com nossos filhos – vasculhar os caminhos que nos levam cada uma das direções. Cortem a cabeça de quem duvidar disso!
quinta-feira, 16 de outubro de 2008 às 00:43
Alice - Edição Comentada: a interpretação simbólica do País das Maravilhas
Alice - Edição Comentada: a interpretação simbólica do País das Maravilhas
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Comentários
2 [+] :
- Daniel Castelo-Branco disse...
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Essa é a resenha que mais me deu prazer escrever. Alice representa a esperança num mundo à beira do caos.
- quinta-feira, outubro 16, 2008
- esperanca disse...
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Caro Daniel, cheguei por acaso aqui. Meio como Alice correndo atrás do coelho (tempo). Valeu a pena - assim como na história. Fiquei louco para conhecer esse livro.
Grande abraço. - quarta-feira, março 18, 2009