O bom é que mesmo sem querer, acabei lendo Watchmen numa cronologia próxima daquela vivida pelas personagens da graphic novel de Alan Moore e Dave Gibbons. Essa edição engloba os capítulos 7, 8 e 9, contando com alguns tesouros entre as histórias. Para começar somos presenteados com um minucioso perfil de cada personagem. O texto explica as motivações, influências, detalhes de personalidade, habilidades, fraquezas e, principalmente, a conexão com o mundo real. Uma oportunidade para desvendar detalhes que muitas vezes passam despercebidos e navegar pela complexidade do processo de criação de uma história em quadrinhos.
O Doutor Manhattan é apresentado pelo próprio Alan Moore como um alienado, isolado, eremita, místico. Doutor em física, ele recebeu suas temerosas habilidades durante uma experiência destinada a subtrair partículas de um padrão atômico deixando, no entanto, intacto o próprio padrão eletromagnético. Seus poderes tendem a se manifestar de modo mais sutil e misterioso do que as pirotecnias empregadas em outros super-heróis atômicos, como por exemplo, o Nuclear.
Ozymandias é um homem perfeitamente desenvolvido que leva a capacidade humana a seu limite extremo. Rico, perfeito, solitário, vê o mundo como um organismo com ele no centro. O Coruja II é uma espécie de híbrido de super-heróis, influenciado por Batman, ele possui um enorme refúgio e uma sólida nave voadora tipo coruja. É um sujeito comum, falível, humano e naturalmente corajoso. Rorschach é um assassino, psicopata, implacável, bruto, imprevisível.
O Comediante é a personagem pivô de Watchmen, mesmo tendo morrido na primeira página. Ele é o jogador sujo, animal, representa toda a América agressiva e militarista presente na história. Anda sempre com um bótom de uma cara amarela sorridente presa no peito. Espectral II é da segunda geração de super-heróis. Mesmo a contragosto, herdou a incumbência de combate ao crime. Watchmen - Volume 3 ainda apresenta outros heróis da velha guarda, serve como argumento histórico.
Mas vamos ao que interessa. Depois de abandonar o Dr. Manhattan, Laurie (a Espectral II) inicia o Capítulo 7 (Irmão dos dragões) indo morar na casa do Daniel Dreiberg (Coruja II). Fuçando no laboratório do sujeito, ela acaba despertando velhas lembranças. Esse é um episódio centrado em recordações, num clima bem nostálgico. Eles conversam sobre a idéia infantil e constrangedora de combater o crime fantasiado. Essa é uma das poucas oportunidades para conhecer um pouco mais sobre as ferramentas de combate do ex-herói.
Daniel lembra que uma das motivações na época era fazer parte de um grupo de guerreiros contra o crime, uma confraria lendária, uma irmandade como os Cavaleiros da Távola Redonda. Por outro lado, os críticos diziam que era besteira montar um arsenal para prender putas e trombadinhas. Enquanto os dois conversam, a Terceira Guerra Mundial ganha fôlego com o desaparecimento do Dr. Manhattan. A contagem regressiva para o embate nuclear começou e o clima é de desconfiança generalizada.
Fico imaginando o impacto psicológico de Watchmen na população daquela época. Deve ter sido um ponto de cartase para toda uma geração. Imagine-se lendo algo que parecia tão profético, no meio de uma guerra entre Estados Unidos e União Soviética. Fico arrepiado só de pensar. Talvez por isso a HQ pareça refletir muito mais sentimentos em quem viveu aquela época do que na geração pós-Guerra Fria. De qualquer forma, Watchmen é um legado histórico que deveria fazer parte de qualquer aula sobre geopolítica.
Além de todo esse viés, temos em Watchmen - Volume 3 uma constante sexual que humaniza as personagens e as coloca a mercê de seus instintos mais primitivos. Laurie leva Daniel para cama, mas o coitado do Coruja acaba brochando. O trágico acontecimento faz o ex-herói perceber o bosta-mole que se transformou. Daniel ressuscita o Coruja e Laurie a Espectral. Fantasiados eles embarcam na Nave-Coruja em um passeio pela cidade. No caminho salvam umas pessoas de um incêndio, fazem sexo selvagem e definem um novo objetivo: libertar Rorschach.
O capítulo termina e logo em seguida temos um artigo do Daniel chamado "Sangue dos Ombros de Pallas", em que ele traça um metafórico paralelo entre o estudo do universo das corujas e a imaginação humana. O que mais me chamou atenção nesse capítulo é o fato do resgate ser a primeira cena de ação com heróis atuando de maneira "tradicional". E veja que durante o resgate a nave tocava música e foi servido cafezinho para acalmar o pessoal. Por esses detalhes exóticos aposto que muita gente vai ficar decepcionada com o filme prometido para maio de 2009.
O Capítulo 8 (Velhos fantasmas) começa no Dia das Bruxas. Hollis Mason (o primeiro a vestir o uniforme do Coruja) liga para Sally Júpiter (a mãe da atual Espectral e primeira a usar o uniforme) para comentar a notícia que dois heróis mascarados haviam salvado um grupo de pessoas de um cortiço em chamas. A descrição batia com a filha de Sally, que declaradamente nunca gostou da missão heróica que herdou da mãe. A repercussão nas ruas do fato é o ponto forte desse episódio. As pessoas estão confusas com a volta dos heróis mascarados.
No laboratório do Coruja, Daniel começa a montar o quebra-cabeça de Rorschach sobre o "matador de máscaras" e acelera o plano para soltar o ex-companheiro. Daniel é pego de surpresa com a visita de um detetive. Ele especula sobre seu envolvimento com Rorschach. Vendo que não tem mais nada a perder, Coruja e Espectral invadem a prisão. O resgate foi muito legal, ponto alto do capítulo e um dos melhores acontecimentos da série. Rorschach é muito sacana, mesmo preso na solitária conseguiu brilhantemente escapar das garras dos inimigos.
O capítulo também é marcado pelo embate jornalístico entre a revista Nova Express e o jornal New Frontiersman. Enquanto um associa os heróis mascarados com a famigerada Klu Klux Klan, outro capta o clima das ruas, a paranóia da guerra e sai em defende dos mascarados. Nessa hora a cidade já estava sabendo da fuga do cara manchada. A notícia dava conta que o Coruja tinha sido o responsável. Alguns baderneiros ensandecidos correram para casa do Coruja I e mataram o pobre Hollis Mason, que não tinha nada a ver com isso.
O capítulo encerra com Dr. Manhattan levando Espectral embora. Antes disso aparecem seis quadrinhos estranhíssimos. Neles a Manish e o Shea nos mostram uma imagem de um monstro e diálogos sobre uma possível conspiração. Será que esses caras são os responsáveis pelo morte dos super-heróis? De difícil compreensão. A sensação é de uma mensagem subliminar. No final do capítulo temos o esboço da matéria "A honra é como o falcão, as vezes deve ser encapuzada", do jornal New Frontiersman.
O Capítulo 9 (As trevas do mero ser) começa com Dr. Manhattan e Espectral no planeta Marte. Um castelo de cristal emerge diante dos olhos da moça. Ela tem a difícil missão de convencer o azulão a volta à Terra. Deve ser difícil conversar com alguém que enxerga o futuro. Segundo Dr. Manhattan, tudo é predeterminado, até suas próprias reações. Espectral alfineta dizendo que o ser mais poderoso do universo não passa de uma marionete seguindo um script. "Todos somos, eu somente vejo as cordas", responde Manhattan.
O capítulo é um flashback de Espectral. Viajando pela insipidez do planeta vermelho ela une fragmentos que revelam um segredo do passado: o Comediante é seu pai. No lado oposto, Manhattan demonstra total desprezo pelas emoções humanas. Ainda assim, diante de um "milagre termodinâmico", o Doutor passa a enxergar a beleza da vida e os mistérios da probabilidade humana, fazendo-o mudar de idéia e decidindo voltar para salvar a Terra da autodestruição. Após o capítulo temos recortes de jornal e algumas cartas de Sally Júpiter.
O importante daqui pra frente é perceber que nada nas páginas de Watchmen é gratuito. O título dos capítulos, por exemplo, é recheado de referências. Bob Dylan, Elvis Costello e John Cale emprestam versos de suas canções, William Blake e Percy Shelley aparecem com seus poemas, temos ainda Gênesis 18:25, Albert Einstein, Nietzsche, Eleonor Farjeon, Carl Jung e o profeta Jó. A própria pichação "Who watches the watchmen?" que aparece na HQ, vem do latim "Quis custodiet ipsos custodes?", verso extraído das "Sátiras" do poeta romano Decimus Junius Juvenalis. Traduzindo seria algo como: "Quem vigia os vigilantes?".
Paralelamente, numa tradução literal, "Watchmen" significa Homens-Relógio. O que acaba encontrando um excelente ponto de convergência com a própria lógica argumentativa desenvolvida por todo o texto. Em síntese temos uma fábula social sobre tempo, poder e justiça. A pichação simboliza tudo isso. A dúvida é: em que contexto os super-heróis seriam importantes? Watchmen nos desafia a encontrar respostas num mundo à beira da destruição total.
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