Somente com Watchmen - Volume 2 (Via Lettera, 2005) sou capaz de entender o valor histórico das sagradas escrituras. A edição contempla os capítulos 4, 5 e 6 (de um total de 12) da graphic novel escrita por Alan Moore e ilustrada por Dave Gibbons. Nas primeiras páginas antes dos quadrinhos, Moore nos presenteia com um revelador artigo em que conta as motivações que o levaram a escrever Watchmen. De tão fundamental para o entendimento da trama, essa peça histórica deveria ter vindo logo do "Volume 1". Caso não tenha sido proposital, o fato evidencia um grave erro de cronologia da editora brasileira.
O autor britânico revela em seu texto que tentou partir de onde George Orwell parou. Seu objetivo era publicar Watchmen em 1985, aproveitando o gancho do livro "1984" (leia a resenha), em que Orwell desenvolve uma metáfora pessimista do pós-guerra, sinalizando que num futuro próximo a humanidade seria dominada pelo totalitarismo. O artigo também revela o senso de humor de um Alan Moore satisfeito com o sucesso de sua criação: "Autografamos tantos gibis que estamos pensando em trocar de nomes somente para aliviar o tédio, e sempre que vemos aquela face pequena, sorridente, idiota e amarela, com a mancha vermelha cor de sangue, ficamos com uma enxaqueca intolerável."
Ele explora também as condições em que nasceu Watchmen, desde sua idéia original de utilizar personagens da extinta linha de HQ da editora Charlton, até suas angústias após a finalização do projeto. Moore percebeu que a temática havia levado a história para um território inteiramente novo, sendo estimulante e ligeiramente alarmante. O autor suspeitava que havia "mordido mais do que poderia engolir". Sua preocupação era ter deixado meadas críticas na narrativa, as quais não poderia resolver. Dessa forma o público poderia enxergar em Watchmen uma "grande e desordenada tigela fumegante de espaguete semiótico".
O território, ao qual Moore se refere, é povoado de perguntas nunca antes publicadas nas páginas de um gibi comercial. Como seria o mundo caso os super-heróis existissem de fato? Não há dúvida que depois de uns 20 anos, muita coisa seria diferente. O equilíbrio do poder, por exemplo, iria mudar. Países sem super-heróis iriam se armar muito mais do que hoje. O mundo ficaria em constante clima de guerra iminente. A legislação também sofreria alterações. Pense nos estragos que justiceiros independentes fariam. A pressão sobre os policiais atingiria níveis insuportáveis.
Na mesma medida a paranóia da população iria crescer. Imagine conviver com super-heróis que enxergam através das paredes, com certeza aumentaria o número de doentes mentais. A tecnologia também iria mudar. Um sujeito que pode voar de uma ponta a outra da galáxia traria muito mais informações que nossas atuais ferramentas de observação. A religião iria se transformar, afinal, deuses sairiam dos céus e passariam a conviver conosco. Toda a nossa cultura teria que se alterar para acomodar a presença de algo mais do que humano. Além disso, com a segurança do mundo repousando nas mãos de um único ser, viveríamos às sombras desse super-herói.
Depois dessa explanação, a história em quadrinhos finalmente começa. O Capítulo 4, intitulado "Relojoeiro", traz a origem do Dr. Manhattan, o único super-herói com poderes da HQ. Tudo começa após a notícia da explosão da bomba atômica em Hiroshima. O jovem Jon Osterman queria ser relojoeiro assim como o pai, mas esse não via futuro no ofício e empurrou-lhe para a faculdade de Ciência Atômica. Anos mais tarde, após concluir o doutorado em física nuclear, Jon vai trabalhar como pesquisador na Gila Flats. Um dia ele fica preso na câmara de testes nucleares e sofre um terrível acidente. Vira pó.
Mas o sujeito consegue reorganizar suas partículas e volta à vida. Sua fisionomia não é mais a mesma, agora ele é azul brilhante e pode viajar no espaço-tempo. É aqui que descobrimos a obsessão de Watchmen por relógios e pelo tempo. Todo o episódio é um eterno vai e vem, deixando o leitor meio confuso. Na descrição do personagem, Alan Moore diz: "Partindo de um super-herói convencional com poder nuclear, vimo-nos perambulando em algumas ruminações quânticas pós-einsteinianas a respeito do tempo."
O Governo dos EUA enxerga em Dr. Manhattan a possibilidade de utilizá-lo como ferramenta de guerra e de marketing. O próprio apelido e o símbolo carimbado no meio da testa foram exigências dos mercadólogos. O título de "combatente do crime" também. A verdade é que a chegada dele mexeu com todo mundo, inclusive os outros super-heróis. Alguns até se aposentaram, considerando-se obsoletos diante de tal ser. Dr. Manhattan ajudou os yankees a vencer a Guerra do Vietnã, ampliando o mandado do presidente Richard Nixon e desequilibrando a balança do poder mundial.
O capítulo explora também o processo de adaptação desse homem-deus à sua antiga rotina. Como fica seu relacionamento com Janey Slater depois dessa transformação? Incrivelmente eles continuam juntos. A partir daí Watchmen explora a sexualidade do personagem. Como ele não envelhece, bastam os peitos e a bunda da Janey cair para que a troque por Laurie, uma jovem heroína de apenas 16 anos. O fraco por mulher é um dos principais componentes da personalidade de Dr. Manhattan. Ao final temos o fictício artigo do personagem Prof. Milton Glass, abordando o impacto negativo da presença de um ser com super-poderes para a paz mundial.
No Capítulo 5, chamado "Terrível Simetria", o personagem Rorschach (se pronuncia Rorchá) continua sua investigação sobre o assassinato do Comediante e a série de atentados contra os outros super-heróis. Inclusive aqui ocorre uma tentativa de assassinato contra Adrian Veidt, o Ozymandias. Ao final o esperto Rorschach é pego numa armadilha pela polícia. Mas o que chama atenção nesse capítulo é o fato de existir uma HQ dentro da HQ. A história "Contos do Cargueiro Negro" vem sendo contada desde o primeiro capítulo, mas aqui ela ganha destaque. Inclusive no final há uma explicação sobre a participação dos piratas nas HQs da década de 1950.
Watchmen - Volume 2 encerra com "O Abismo Também Contempla", Capítulo 6 da história dos vigilantes fantasiados. O título faz referência à clássica frase do filósofo alemão Friedrich Nietzsche: "Não enfrentes monstros sob pena de tornares um deles e se contemplas o abismo, a ti o abismo também contempla." O monstro em Watchmen é Rorschach, que foi preso pela polícia e desmascarado. Quem o contempla é psicanalista Dr. Malcolm Long, que está traçando seu perfil psicológico.
Esse é o capítulo mais interessante até agora. A prisão jogou Rorschach num covil de lobos. Odiado pela polícia e pelos bandidos, o sujeito terá que justificar sua reputação para não ser assassinado. O civil por trás da alcunha é Walter Joseph Kovacs. Magro, branco, ruivo e de sardas, ele passaria despercebido por qualquer lugar. É tão verdade que me lembro de tê-lo visto rapidamente nas primeiras páginas do "Volume 1". O capítulo foca na série de entrevistas em que o Dr. Long tenta tirar alguma coisa da mente perturbada de Rorschach.
O nome "Rorschach" é uma alusão ao psiquiatra suíço Hermann Rorschach, que desenvolveu um teste que consiste em dar possíveis interpretações a dez pranchetas com manchas de tinta simétricas. A partir das respostas obtidas pode-se obter um quadro amplo da dinâmica psicológica do indivíduo. Em Watchmen, as manchas mostradas pelo Dr. Long ao Rorschach, servem de mote para conhecer três recordações que forjaram seu caráter. A primeira mostra ele ainda criança flagrando a mãe se prostituindo, noutra ele cega um garoto com um cigarro e na última ele toca fogo num criminoso que esquartejou uma garotinha dando-a de comer a pastores alemães.
Aliás, na visão de Rorschach, a capa de Watchmen - Volume 2 é um cachorro pastor alemão com a cabeça partida ao meio. Dá para dizer se ele é herói ou vilão? Muito complicado. Mas foi bom desmascarar o personagem, conhecer seus traumas de infância, os problemas com a mãe, a dificuldade de relacionamento com outras pessoas. Tudo isso é muito presente em nosso dia-a-dia. Ao final do capítulo temos ainda fragmentos da ficha criminal do rapaz, o histórico psicológico e outros documentos que compõe o "Dossiê Kovacs". A cada nova página Watchmen mostra um requinte histórico capaz de nos confundir e assustar.
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