Nossa memória é engraçada. De alguma forma ele consegue guardar certos acontecimentos por toda vida. Por outro lado, a grande maioria dos fatos é simplesmente apagada. Quais os critérios que o cérebro usa para decidir o que merece ser arquivado e que vai para a lixeira? A animação israelense Valsa com Bashir (Valse avec Bachir, 2008) explora um pouco o assunto. O filme começa numa conversa de bar entre amigos. Ari Folman (diretor e personagem principal do longa) comenta sobre um sonho recorrente. Nele 26 cães raivosos o perseguem sem parar.
Os dois concluem que o fato deve estar ligado à experiência de ambos no exército israelense durante a Guerra do Líbano nos anos 80. Ari surpreende-se por não conseguir lembrar nada a respeito deste período de sua vida. Para tentar resgatar sua memória e descobrir a verdade sobre os acontecimentos, ele procura todos os seus amigos da época para entrevistá-los. O filme tem um estilo meio documental, com personagens se revezando em tela para contar sua versão dos fatos.
Depois dos acontecimentos no início desse ano, a temática não poderia ser mais oportuna: guerra entre Líbano e Palestina. O homem que nos convida para a valsa do título é Bashir Gemayel, um dos principais comandantes das Falanges Libanesas, uma milícia cristã de extrema-direita apoiada por Israel. Ele liderou várias campanhas militares contra as tropas sírias. Com 35 anos ele foi eleito presidente do país. Em 1982, dias antes de assumir o poder, foi assassinado, vítima da explosão de uma bomba em Beirute.
Valsa com Bashir apresenta com brilhantismo a forma como as pessoas tratavam esse homem, herói, quase um semideus. Suas fotos estão em todos os muros e casas. Lembrei muito do Big Brother de George Orwell. O que se viu no pós-morte foi um massacre de civis palestinos como vingança pela morte do seu líder. Embora Israel não tenha participado, vários jornalistas presentes afirmam que o exército israelita sabia exatamente o que estava acontecendo nos campos de refugiados.
Valsa com Bashir é forte. Pra mim um dos melhores filmes do ano. Não por acaso venceu o Globo de Ouro e foi indicado ao Oscar. Embora violento e extremista, acho que as escolas deveriam avaliar a possibilidade de repassá-lo aos alunos do ensino médio. Mostrar os horrores de uma guerra civil no olho mágico da animação foi uma idéia excelente. Acho que conseguimos caminhar mais um degrau nesse segmento artístico. Tudo isso sem perder a beleza e dinamicidade.
Talvez o grande mérito do filme tenha sido justamente montar um quebra-cabeça de fragmentos surreais sob forma de história verídica. Sem nunca parecer chato ou divertido, a animação consegue nos fazer entender a forma como a guerra é capaz de mudar a vida de a viu com os próprios olhos. O resultado é diverso, mas na grande maioria das vezes o cérebro entra em choque, em alguns casos acaba até inventando memórias falsas para tapar os "buracos negros" de acontecimentos reais.
Além dos méritos técnicos, principalmente em relação à fotografia espetacular e a trilha sonora punk rock perversa e incrivelmente contagiante, Valsa com Bashir tem uma ótima história. De forma bem cadenciada, o filme revela o medo dos soldados diante da guerra. Alguns fogem, outros enlouquecem, uns ficam estáticos, muitos simplesmente observam. Parece que cada homem tenta enxergar a guerra através de uma janela imaginária, como se aquilo não os atingisse. Provavelmente esse seja o "remédio" para subir num tanque e invadir vilarejos matando todos indiscriminadamente. O final termina com imagens reais, mostrando que apesar de seu uma animação, nada do que foi mostrado é brincadeira. Uma muralha de corpos espalhados pelas ruas e becos. Choca e destrói qualquer esperança num mundo melhor.
Confira o trailer legendado clicando no botão play da imagem abaixo.
quarta-feira, 18 de março de 2009 às 00:10
Valsa com Bashir: violento e extremista, os horrores da guerra no olho mágico da animação
Valsa com Bashir: violento e extremista, os horrores da guerra no olho mágico da animação
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