quinta-feira, 3 de novembro de 2011 às 15:49

Steve Jobs - A Biografia: intrigas, descobertas e revoluções numa pequena fábrica de arte

Nota 4/5
NOME
Steve Jobs está no panteão de grandes gênios da humanidade. Ele transformou o Apple II no primeiro computador pessoal. Revolucionou o mercado da informática doméstica com a interface gráfica do Macintosh. Inaugurou o milagre da imaginação digital com "Toy Story" e outros grandes sucessos da Pixar. Reinventou o varejo por meio das Lojas Apple. Mudou a forma como consumimos música com o iPod. Lançou o iPhone e criou da noite para o dia uma nova indústria de aplicativos para dispositivos móveis. Remodelou o computador portátil através do iPad. Criou a Apple, empresa de tecnologia mais valiosa do mundo!

É difícil não ter curiosidade sobre um sujeito desses. A morte precoce só serviu para alimentar esse desejo em descobrir os caminhos trilhados nessa história. Por isso fui um dos primeiros a comprar o livro Steve Jobs - A Biografia (Ed. Companhia das Letras, 2011). Particularmente nunca tive um produto Apple. Também não era fã do empresário. Meu interesse na biografia se deu pelo grande número de opiniões e comentários que explodiram nas últimas semanas. Mais ainda pelo fato de que Jobs e Apple sempre foram uma caixa preta. É difícil encontrar um material oficial em que se possa confiar. Agora já é possível considerar esse livro como o mais importante registro já publicado.

O autor da proeza é Walter Isaacson, experiente jornalista que dedicou dois anos de sua vida para concluir trabalho. Foram mais de 40 entrevistas apenas com o Steve Jobs. E o resultado é excelente. Ele conduziu a biografia de forma bem didática, inteligente, temporal, misturando depoimentos, textos de revistas, livros e discursos. São quase 600 páginas e umas 300 histórias. Algumas delas ele repete, de modo a passar um novo ponto de vista sobre os acontecimentos. Segundo ele deixa claro desde o início, essa foi uma biografia encomendada pelo próprio Jobs. Mas em nenhum momento houve interferência, crítica ou limitação ao trabalho do autor.

JUVENTUDE

Sem esqueletos no armário, coube ao biógrafo navegar por mares bastante nebulosos, como a juventude de Jobs. O livro traz todo o processo de adoção, de busca pelas origens, de abandono da filha, de consumo de drogas, de indisciplina. Nessa época, início dos anos 1970, ele tratava muito mal os pais adotivos, aproveitando-se da pouca cobrança que existia em casa. Quando chegou a hora de escolher uma faculdade, ele optou pela mais caras dos Estados Unidos. Sem dinheiro para bancar a mensalidade, os pais adotivos tentaram convencer o jovem autoriário a mudar a escolha. Jobs insistiu. Nos 18 meses do curso faltava as aulas, descumpria a grade curricular e perambulava nas turmas de dança em busca de garotas.

Desistiu da faculdade. Mas foi no campus que Jobs começou a entrar numa onda de espiritualismo oriental. Ele era muito suscetível a todos os tipos de teorias e ideias malucas. Com muita facilidade absorvia traços de personalidade e comportamento das pessoas ao redor. A figura paterna mais importante nesse período foi Robert Friedland, que muitos dizem ter forjado o caráter de Jobs. Ele era proprietário de uma fazenda comunitária de maçãs e interessado em vegetarianismo, zen-budismo, meditação e espiritualidade. Em busca de iluminação, Jobs juntava e amplificava tudo através do ácido.

Assim ele era. Sempre que se interessava por alguma coisa, levava ao extremo irracional. Como no caso de seus hábitos alimentares. Ele acreditava no poder místico de alguns alimentos. Era capaz de passar semanas só comendo cenoura, frutas ou legumes sem amido. Em 1974, após abandonar os estudos foi procurar emprego na Atari, fabricante de games. Era conhecido pela arrogância e mau cheiro. Só tomava um banho por semana, pois acreditava que sua dieta frugívora era capaz de eliminar os odores da transpiração. Essa devoção fervorosa o fez abandonar o emprego e viajar à Índia. Aos 19 anos Jobs saiu em busca de seu guru espiritual. Foi uma aventura corajosa e muito sacrificante.

APPLE

Quando voltou da Índia, Jobs descobriu uma fórmula de ganhar dinheiro embalando e comercializando as placas de circuito de seu amigo Stephen Wozniak. Nessa época "muita gente da contracultura considerava os computadores uma ameaça orwelliana, o domínio do Pentágono e da Estrutura de Poder." Mas estava em curso uma mudança de metalidade. "A computação deixou de ser considerada uma ferramenta de controle burocrático para ser adotada como um símbolo de expressão individual e libertação", disse John Markoff em seu estudo sobre a convergência da contracultura com a indústria de computadores.

Foi uma fase bem movimentada. O lançamento do computador Altair 8800 interessou muita gente, entre elas Steve Jobs e Bill Gates. Iniciava-se uma disputa pela plataforma capaz de criar um universo navegável ao consumidor doméstico. A Xerox saiu na frente, com um sistema operacional baseado numa interface gráfica e tela em bimap. Mas foi um fracasso em vendas. Jobs teve a esperteza de conseguir que a empresa demonstrasse como tudo funcionava. Coube aos técnicos da Apple copiarem o sistema. Curiosamente, uma das características mais marcantes dos sistemas atuais - a sobreposição das janelas - não existia no original. Mas Bill Atkinson foi convencido do contrário e acabou criando a complexa ilusão de códigos que todos achavam impossível.

A sobreposição das janelas acabou ficando famosa nos computadores Windows. A cópia feita por Bill Gates custou a amizade. Mesmo após 30 anos, Jobs mantinha a mágoa: "Bill é pouco imaginativo e nunca inventou nada, e é por isso que acho que ele se sente mais a vontade agora na filantropia. Ele só pilhava despudoradamente as ideias dos outros." Era o início uma longa disputa entre Apple e Microsoft. O assunto rendeu bastante no livro. Eu achei muito divertido passear detalhadamente por todos os capítulos da guerra. E acima de tudo, foi uma excelente oportunidade para conhecer curiosidades sobre a história da informática, como engenheiros discutindo o uso do mouse, ícones de navegação e a cor do fundo das telas.

Nesse período, logo após completar 30 anos, Jobs passou pelo momento mais dificil da carreira: foi demitido da Apple em 1985. Como um gênio pode ser expulso da empresa que criou? Jobs foi e mereceu. A narrativa desse processo é a mais interessante do livro. Parece novela mexicana com intrigas, conspirações, choros, traições, abandonos e vingança. Todos os minutos descritos em suas minúcias. Pacote dramalhão completo. Mas ao contrário do que muitos pensam, sua maior lição de sua vida não foi a demissão propriamente dita. Jobs realmente evoluiu nos anos seguintes, quando criou uma empresa chamada NeXT e colecionou sucessivos fracassos.

CAMPO DE DISTORÇÃO DA REALIDADE

Mas "fracasso" é uma palavra que não existe no vocabulário de Jobs. Há sempre uma explicação a partir do famoso "campo de distorção da realidade". Quem contou garante que esse termo foi usava 34 vezes no livro. De tão importante, merece até uma explicação do autor: "Em certa medida, falar em campo de distorção da realidade era apenas uma maneira simpática de dizer que Jobs tinha tendência a mentir. Mas, realmente, era uma forma mais complexa de dissociação. Ele afirmava coisas - fosse um fato da história mundial ou uma proposta que alguém tinha feito numa reunião - sem levar em conta a verdade. Isso provinha de um desafio deliberado à realidade, que ele lançava não só aos outros, mas também a si mesmo."

Steve Jobs mentia, interiorizava, se iludia e fazia acreditar em seu ponto de vista. Essa era a uma forma de exteriorizar seu desvio de caráter. Até hoje, em tudo que já li sobre ditadores e sanguinários, nunca vi tantos relatos de arrogância, canalhice, humilhação e brutalidade, como nessa biografia. Numa tentativa de encontrar uma explicação para a origem de tanta violência e transgressões sociais, o autor define: "A atitude de Jobs vinha em parte de uma tendência a ver tudo como binário. A pessoa era herói ou babaca, o produto era incrível ou uma merda. Mas ele parecia ficar bloqueado com coisas mais complexas, sombreadas ou nuançadas: casas, comprar o sofá adequado, comprometer-se a dirigir uma empresa."

Ele tinham sempre um motivo para humilhar pessoas de dentro e fora da Apple. Não faltam relatos. Costumava sempre estacionar sua bela Mercedez na vaga de deficiente físico. Mesmo sendo presidente da Apple, tendo todas as vagas que quisesse, fazia questão do local proibido. No aniversário de 30 anos, abandonou todos os presentes recebidos no quarto do hotel. Jobs acreditava que as leis sociais simplesmente não valiam pra ele. Com o passar dos anos seus disparates tornam-se folclóricos, nem por isso menos doentio. Ele tinha ciência desse mau comportamento. Mas dizia que esse era um traço importante de sua característica perfeccionista.

INOVAÇÃO PELO DESIGN

Isso Steve Jobs realmente era. Cada minuto de sua vida era minuciosamente pensado, planejado e trabalhado. Ele fazia questão de cuidar pessoalmente de detalhes "irrelevantes" como a tonalidade de azul de uma caixa, a placa de um banheiro ou o tamanho da fonte de um anúncio. Tudo passava pela mão dele. Centralizador, gostava de manter todo o processo próximo à mesa. Jobs era atento à matéria-prima, fabricação, design, embalagem, eventos de lançamento, comerciais de TV, reportagens e até a experiência de uso. Ele não era daqueles que achavam que o cliente sempre estava certo. Era capaz, por exemplo, de tirar as setas do teclado para obrigar os usuários a utilizar o mouse (na época do lançamento houve uma certa resistência ao novo periférico).

O sujeito sequer acreditava em pesquisa de mercado! Costumava dizer: "Alexandre Graham Bell fez alguma pesquisa de mercado antes de inventar o telefone?". Mas há um lado positivo nisso tudo: os produtos da Apple são maravilhosos. Para ele, ao contrário do que diz o dicionário, design não é "aparência favorável". Design "é a alma fundamental de uma criação do homem, que acaba se expressando em sucessivas camadas exteriores." A revolução aconteceu nesse ponto. Antes do Jobs voltar à empresa, os engenheiros diziam: "Aqui estão as vísceras" e os designers davam um jeito de enfiar os componentes no ganinete. Quando voltou, a balança pendeu para o lado artístico do produto. Mas há também muita gente dentro da Apple que não recebe os méritos devidos, um deles é Jonathan "Jony" Ive, idealizador constantemente "roubado" por Jobs.

Toda essa inovação não vem de graça. No final dos anos de 1990, quando todo mundo cortava gastos, a Apple estava investindo em pesquisa e desenvolvimento. "Dessa política adveio a maior década de inovação sustentada de qualquer empresa nos tempos modernos." Jobs sempre remou contra a maré, seja contrariando os membros do conselho da Apple, outros executivos ou a própria imprensa. Estão aí os casos do iPod, iTunes, Lojas Apple, iMac, iPhone, iPad. Em todos os casos Jobs estava sozinho. Ninguém foi capaz de imaginar o futuro com tanta precisão. Após sua morte, muitos se apressaram em dizer que a Apple deixou produtos para os próximos 10 anos (como uma TV diferente). Eu penso que o segredo de Jobs não estava nos projetos e sim no desenvolvimento, na melhoria contínua, na busca pela perfeição. Isso morreu com ele.

O LEGADO

O que talvez tenha acabado também é a utopia unificada criada pela Apple. Jobs sonhava sua empresa como "um jardim mágico murado onde hardware, software e aparelhos periféricos funcionassem bem em conjunto para criar uma grande experiência". O problema é que isso cria um monopólio e bloqueia o talento. Um das críticas mais duras a esse modelo veio de Cory Doctorow, que escreveu um manifesto intitulado 'Why I won't buy an iPad' [Por que eu não comprarei um iPad] para o blog BoingBoing. "Muita meditação e muita astúcia foram investidas no design. Mas há também um desprezo palpável pelo proprietário. Comprar um iPad para os filhos não é o jeito de ensinar-lhes que podem desmontar e montar o mundo novamente; é um jeito de dizer à sua prole que até para trocar a bateria é preciso recorrer a um profissional."

Por esse tipo de coisa é de espantar o culto religioso que gira em torno da Apple. Por que tantos fãs? Por que tanta euforia? Valeu a pena "ser" Steve Jobs? O que realmente o torna tão diferente dos demais magnatas? Por que ele é especial? A Biografia não chega a dá uma resposta definitiva, mas nos induz a concluir que mais do homem do negócios, estava o artista, o visionário. Repetidas vezes ele dizia que na Apple a arte estava acima do lucro. Acreditava na ideia do existencialismo de objetos inanimados. Tinha tanta paixão por seus produtos ao ponto de nos convencer que era possível transformar o mundo, criar revoluções, pensar diferente. É nessa herança que eu tento me apegar.

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