segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012 às 20:25

As Crônicas de Nárnia: um chantilly para adocicar a força opressora daapologética cristã

Nota 4/5
As Crônicas de Nárnia
Com o fim da série "O Senhor dos Anéis", começou uma especulação sobre a nova fantasia capaz de preencher o vazio deixado pela Terra-média. Na época, fiquei sabendo que o C.S. Lewis, autor de As Crônicas de Nárnia, fez faculdade com J.R.R. Tolkien. Consta que os dois eram muito amigos e conversavam sobre suas obras. A associação foi imediata. Comecei a enxergar muita coisa no trabalho de Lewis que gostava em Tolkien. Havia um mundo paralelo, seres mitológicos, um jovem herói buscando a paz, batalhas épicas e a ascensão de um novo rei.

Na prática, as obras não podiam ser mais diferentes. As Crônicas de Nárnia é bem mais infantil e fácil. A leitura é rápida e sem paradas. Ao contrário de três, temos sete livros compondo a saga. Eu li a edição Volume Único da editora Martins Fontes, com os livros apresentados na ordem de preferência de Lewis. Entre um capítulo e outro, belíssimas ilustrações do artista Pauline Baynes. Realmente é um livro muito bem acabado e diagramado. A única chatice é o peso. Depois de uma hora o braço começa a ficar cançado. É preciso um pouco de malabarismo para manter o ritmo da leitura.

O SOBRINHO DO MAGO

Apesar das dores físicas, O Sobrinho do Mago, primeiro livro da série, compensa o sacrificio. O texto tem uma linguagem simples, gostosa e rápida. Ótimo para leitura em voz alta. Em síntese, a história conta a aventura de um casal de crianças levadas pelo tio a usar um anel mágico, entrando num universo paralelo. Os dois acabam conhecendo uma bruxa e a levando para Londres. Mas o garoto fica mal visto, tendo que provar seu mérito numa aventura. A ideia da bruxa em nosso mundo é boa, mas foi pouco explorada pelo autor. Ele limitou-se a uma peripércia na rua e pronto. Seria divertido vê-la tentando conquistar o poder na Terra.

Achei também que o universo paparelo foi descrito de forma breve, sem muitos detalhes. Até esse momento, tudo parece meio sem sentido. As aventuras não têm significado. A atitude dos personagens é estranha. O leitor é só uma mera testemunha dos fatos. Ninguém explicou nada do que estava acontecendo. Tudo isso deixou a impressão de um livro bem infantil, sem qualquer indicativo que me levasse a crê em uma filosofia por trás disso tudo.

Aos poucos vamos percebendo que estamos diante da criação de Nárnia. É o começo de tudo. Uma métafora do nascimento da Terra. O anfitrião é um leão falante chamado Aslam. No livro ele é retratado como Deus, ou Jesus Cristo para ser mais exato. Ele é o responsável por trazer e levar gente de um mundo a outro. Ele dá asas a cavalos, acorda o sol e pinta as estrelas no céu. É quase uma apostila de catecismo. Talvez por isso Nárnia não me pareceu um lugar divertido. É um mundo muito simples, sem grandes desafios. O próprio herói do livro diz : "Nárnia é um mundo ainda sem história".

O LEÃO, A FEITICEIRA E O GUARDA-ROUPA

O livro termina com um gancho muito legal para o segundo da série: O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa. A lenha da macieira de Nárcia, serviu para construir o tal guarda-roupa do título. Isso permitia que novas crianças entrassem em Nárnia. A série de filmes começa a partir desse livro. E o começo da história é bizarra! Fiquei com calafrios vendo uma garotinha ser seduzida por um bode para dentro de sua cabana. Para mim isso pareceu uma pornografia subliminar. Também estrenhei o Papai Noel entregando armas para as crianças. O maluco deu uma punhal para uma garotinha de 6 anos!

Apesar disso, novamente senti prazer na leitura. É quase uma conversa com o autor. Como se ele próprio contasse a história ao vivo. Aqui eu percebi que o filme é bem fiel ao livro. Deu até vontade de assistir novamente. Dessa vez com novos olhos. Também é perceptível que esse foi realmente o primeiro livro escrito da saga. Foi aqui que tudo começou. Somente depois, com esse livro pronto, Lewis desenvolveu um prelúdio e a mitologia da série. É aqui também que Aslam estreita a alegoria divida. Ele é traído, entrega-se à morte e ressuscita. Só esqueceram de avisar que Deus não faz guerra.

Por falar nisso, achei a descrição da batalha a coisa mais sem graça da história da literatura. Pobreza também na descrição dos cenários e na falta profundidade dos personagens. O autor usa muito mal os subtramas. Exemplo: para tirar as duas garotas de perto do corpo, ele inventa que elas querem esticar as pernas. Por que Aslam as deixou testemunhar sua morte, sabendo a crueldade que seria? Não tem lógica. A morte do Aslam até que foi bem escrita, mas achei cruel demais. Destoa do restante do livro. É quase uma via-cruces do leão. Até agora o livro tem se mostrado uma leitura gostosa, mas a história realmente não encaixa.

O CAVALO E SEU MENINO

Depois de acontecimentos tão dramáticos, tivemos um final feliz. Nárnia entra na Era de Ouro com o reinado em Cair Paravel dos quatro irmãos: Pedro, Susana, Lúcia e Edmundo. Talvez por essa calmaria, Lewis decidiu levar a história para um outro cenário. O terceiro livro da série, O Cavalo e Seu Menino, desembarca em Calormânia, fora dos domínios do Grande Leão. Numa colônia de pescadores um garoto encontra um cavalo falante de Nárnia. Juntos fogem à capital calormana, onde descobrem um plano do príncipe para conquistar Arquelândia (país vizinho), invadir Nárnia e tomar a Rainha Susana como esposa.

A história é completamente diferente da série. Parece mais um apêndice. Ainda assim achei válida. Foi uma forma criativa que o autor encontrou para manter vivo o universo de Nárnia sem prostituir seus personagens. O ritmo é bem parecido com Aladim e As Mil e uma Noites. Com certeza as peripécias dos personagens dariam um bom filme e um ótimo game. Quem sabe eles exploram essa história no futuro. A presença de Aslam nesse livro é bem pequena. Também não encontrei nenhuma grande lição religiosa na história.

PRÍNCIPE CASPIAN

Lewis volta para Nárnia através do quatro livro da série: Príncipe Caspian. A história é conhecida, inclusive já ganhou uma adaptação para o cinema. O mote é a velha disputa na sucessão ao trono. Nárnia agora está dominada pelos telmarinos. Animais falante são só velhas lendas. Mas o jovem príncipe Caspian acredita que esses seres existem de verdade e tenta resgatar a verdadeira Nárnia. Mas suas pretensões são logo abortadas pelo próprio tio Miraz, que o expulsa do reino. Pedro, Susana, Lúcia e Edmundo são novamente convocados por Aslam para liderar a batalha de reconquista do país.

É um livro divertido. Originalmente foi o segundo a ser escrito e já percebemos aqui uma boa dinâmica entre os personagens. Gostei da preparação para a batalha, o reencontro de antigos companheiros e o calor das amizades. Ainda assim, o final do livro é cansativo e um pouco repetitivo. Novamente muita coisa fica aberta. É difícil para o leitor aceitar como verdade a capacidade de superação dos personagens. Crianças duelando mortalmente com adultos? É ilógico e imoral. A liderança na batalha é frouxa, não convence e o príncipe não se destaca.

A VIAGEM DO PEREGRINO DA ALVORADA

Caspian realmente só se torna adulto no quinto livro: A Viagem do Peregrino da Alvorada. É disparado o melhor volume da série. A motivação é excelente, o ritmo da história contagiante, os novos personagens divertidos e as descobertas empolgantes. Também já houve adaptação para o cinema, que por sinal o melhor dos filmes até agora. No livro, somente Lúcia e Edmundo tem autorização para volta à Nárnia. Eles trazem consigo o primo Eustáquio. No meio do oceano oriental encontram o rei Caspian, a bordo do navio Peregrino da Alvorada. Juntos vão em busca dos sete fidalgos perdidos e da terra de Aslam.

É realmente a melhor história de As Crônicas de Nárnia. A superficialidade de Lewis agora é justificada pela necessidade de continuar a aventura atrás da ilha seguinte. Destaque para a ilha do dragão, em que o pecado da cobiça é levado ao extremo, e das criaturas de uma perna só. Nesse livro a aventura e o humor se encontram de uma maneira até então inédita na saga. O final já não é tão divertido. Os personagens chegam ao "fim do mundo", a casa do leão falante. O encontro com "Deus" é emocionante, sem dúvida, mas muito puritano e moralista.

A CADEIRA DE PRATA

Senti muita tristeza ao fim da viagem. Mas bastou começar a leitura de A Cadeira de Prata, sexto da série, para perceber que Nárnia ainda tinha muito a oferecer. Já crescidos, nenhum dos antigos protagonistas retorna à história. O único que recebe o indulto de Aslam é Eustáquio. Na história, Caspian já está muito idoso. Sua grande tristeza foi ter perdido seu filho, o príncipe Rilian. A aventura do livro é a busca por esse rapaz. Pra isso será preciso percorrer as terras do norte, enfrentar gigantes famintos, mergulhar nas profundezas do mundo interior, vencer uma batalha contra os terrícolas e subjugar a poderosa Feiticeira Verde.

Excelente livro! Tem todos os atributos visuais para se tornar um belo filme. Aqui Lewis mostra toda sua inspiração e nos oferece mais uma série de personagens inesquecíveis. O melhor deles é o pessimista paulama Brejeiro. Esse cara é sensacional. Chorei de ri com suas tiradas depressivas. A comparação com algumas pessoas da vida real é inevitável. A história toda tem um ritmo muito bom, mantive o interesse até o final. Aqui o texto é mais detalhado. Há até um pouco de suspense, especialmente no escuro do subterrâneo.

A ÚLTIMA BATALHA

Depois de tantas aventuras nos mundos e submundos de Nárnia, preparei meu espírito para o apoteótico sétimo e último livro: A Última Batalha. Mas infelizmente a história decepciona pela banalidade. Tudo começa quando um macaco encontra o couro de um leão. Ele veste o seu amigo burro e passa a profetizar o retorno de Aslam. Achei a alegoria muito parecida com o manifesto "A Revolução dos Bichos", escrita 10 anos antes pelo também britânico George Orwell (leia a resenha). A diferença é que ao invés de porcos socialistas, temos um macaco pecador que usa o poder da religião para amedrontar a população e enriquecer em cima disso.

Esse é o livro em que a figura divina de Aslam está mais presente. Há inclusive um demônio: Tash. A confusão em torno desse falso deus é tão grande que o mundo de Nárnia caminha para o fim, o apocalipse, o armagedom, o julgamento final. Pois é, depois de criar o mundo com o primeiro livro, Lewis o destrói nesse último. O que isso significa? Que o livro As Crônicas de Nárnia é uma versão alternativa da Bíblia Sagrada! A história então apresenta uma visão do paraíso, da concepção de morte, espíritos e renovação. Eu acho que esse livro não funciona para as crianças. Chato demais!

AS CRÔNICAS DE NÁRNIA

Mas deixando de lado os livros puramente religiosos, As Crônicas de Nárnia apresentam uma aventura divertida, empolgante e engenhosa. Merece o título de obra-prima da literatura fantástica! Só recomendaria adquirir os edições separadas. Esse Volume Único passa a falsa ideia que o mundo de Nárnia é fechado, com acontecimentos interdependentes. Minha percepção é diferente. Acho que os livros funcionam em qualquer ordem. O mais importante é ter senso crítico ao analisar esse universo criado pelo teólogo anglicano Clive Staples Lewis. Pois no fundo, Nárnia é só um chantilly para adocicar a força opressora da apologética cristã.

Ficha técnica:
Título original: The Complete Chronicles of Narnia
Título no Brasil: As Crônicas de Nárnia - Volume Único
Editora: Martins Fontes
Autor: Clive Staples Lewis
ISBN: 9788578270698
Ano: 2009
Edição: 2
Número de páginas: 792
Acabamento: Brochura
Outras resenhas sobre o assunto:
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