O esforço para gostar de um filme é mínimo. Essa é a regra. Geralmente os campeões de bilheteria são excelentes entretenimentos, mas nada agregam de valor. Porém, existem pouquíssimos filmes que todo mundo gosta, mesmo sem entender muita coisa. "Matrix" (1999), dos irmãos Wachowski, é meu exemplo predileto. Quando o filme foi lançado eu era só um moleque. Achei o máximo os caras vestidos de preto, mandando bala em slow motion, explosões de helicópteros, muita tecnologia, frases de efeito, nerds no poder. O segundo filme abusou mais ainda, continuou misturando religião, política e, claro, muita adrenalina. Novo sucesso.
O terceiro e último filme da seqüencia exagerou na dose ideológica, tornando o filme surreal e chato. Ninguém entendeu a guerra entre homens e máquinas, resultando: um tremendo fracasso. Mais do que isso, os fãs taxaram as partes 2 (Matrix Reloaded) e 3 (Matrix Revolutions) como verdadeiros equívocos, manchas na história do filme original. Okay, confesso, fui por muito tempo um desses fãs. Falava mal porque não entendia a verdade subliminar da "Matrix". Vivia num mundo de sonhos.
Mas lá se vão quase 10 anos. Nesse período comecei a estudar a história. Um de meus melhores aliados nessa aventura foi livro "Matrix - Bem-Vindo ao Deserto do Real" (2003), uma coletânea de artigos organizada por William Irwin. Nele fiquei sabendo toda a base mitológica por trás do filme. Passeando por "Alice no País das Maravilhas" de Lewis Carroll (leia a resenha), "1984" de George Orwell (leia a resenha), além de Jesus Cristo, Buda e todas as grandes alegorias filosóficas como "A Caverna de Platão" e "O Oráculos dos Delfos".
Neuromancer (Editora Aleph, 2003), romance de William Gibson, é uma das influências mais importantes nesse seara. Publicado originalmente em 1984, o livro transformou-se no grande clássico da literatura cyberpunk - até então inédito subgênero da ficção científica. Tratado como "uma versão adulta" da Trilogia Matrix, são tantas semelhanças que alguns dizem que o filme dos irmãos Wachowski plagiou Neuromancer, outros defendem que o longa fez apenas uma homenagem ao livro.
A história é sobre Case é um cowboy cyberespacial, uma espécie de super-hacker do futuro. Com seu sistema nervoso contaminado por uma toxina, ele vaga pelos subúrbios de Tóquio cometendo pequenos crimes. No ameaçador submundo das operações obscuras de transferência de dados e da genética ilegal, Case está a ponto de ser destruído pelas dívidas e pelas drogas, quando é contatado por Molly, uma sedutora mulher samurai das ruas. Molly o leva ao misterioso Armitage, um ex-oficial das Forças Especiais, que oferece a cura de Case em troca da participação em uma missão: hackear um poderoso mainframe.
Garanto para você que é impossível lê o livro sem pensar em "Matrix" o tempo inteiro. Molly veste uma roupa de couro preto colada ao corpo e usa óculos espelhados, igualzinho à indumentária da heroína Trinity. A diferença é que no filme Neo gasta um tempão apaixonando-se por Trinity até levá-la à cama. No livro, Case e Molly rapidinho já fazem sexo, sem amor, só por diversão mesmo. Outra semelhança: os capangas gêmeos albinos de Merovingian (Matrix Reloaded) são iguaiszinhos aos capangas "quase idênticos" de Wage (bandido que Case deve uma grana). O próprio verbete que nomeia o filme é citado inúmeras vezes no livro.
Lembra como é fácil aprender habilidades em "Matrix"? Basta o operador apertar um botão e voalá. Em Neuromancer é a mesmíssima coisa, só que eles usam um chip chamado microsoft. Falando nisso, Neuromancer mostra os "desplugados" rastafáris Maelcum e Aerol, que são parecidos com os "desplugados" rastafáris Tank e Dozer de "Matrix". Sabem onde aqueles filhos de Jah vivem? Zion, uma estação orbital rebelde. Quer mais? Os zionitas adoram música Dub, descrito como um sensual mosaico sonoro mixando uma enorme quantidade de pop digitalizado. Lembrou da festinha promovida por Morpheus?
Case em uma das passagens do livro chega a dizer que enxerga as feições transformadas em um código, como ideogramas japoneses enfileirados. Até balinha de gengibre um dos personagens de Neuromancer oferece a Case. A mesma técnica de aproximação foi usada no filme, quando o Oráculo conversa com Neo. O livro também mostra armas de pulso eletromagnético, idêntica tecnologia da nave Nabucodonosor, de "Matrix". Parecido mesmo é o crescimento intelectual de Case/Neo, sempre amparado pela força protetora de Molly/Trinity.
Ambos os heróis alcançam o ápice de sua capacidade no duelo em pé de igualdade com a Inteligência Artificial, descrita como uma mandala fragmentada de informação visual. Igual à cena em que Neo invade a cidade das máquinas em "Matrix Revolutions". Achei bem interessante a forma como o autor William Gibson inventou o futuro de várias corporações, como a união da Mitsubishi com a Genentech (empresa americana de pesquisa genética), e até da máfia japonesa Yakuza, que no futuro imaginado em Neuromancer, cresceu e absorveu as máfias italiana e russa.
Neuromancer é uma história que já começa pela capa, mostrando uma garota pálida (drogada), com o olho branco. Segundo a sabedoria oriental, o estado de stress ou depressão que faz com que o branco do olho de uma pessoa também apareça abaixo da íris e não só dos lados. É considerado prenúncio de problemas, doenças ou tragédias. Por definição, Neuromancer é a passagem para a terra dos mortos. Nada mais apropriado, então, para uma história que fala de fantasmas, drogas, realidade, ilusão, amor e tecnologia.
E polêmicas à parte, Neuromancer é uma fantástica aventura hacker, que, apesar de muito difícil de ser lido, funciona como um grande vídeo-game. É uma espécie de jogo de aventura num mundo de sonhos, só que ao invés de dormir, basta plugar o cérebro. William Gibson conseguiu reproduzir com precisão dezenas de ambientes complexos num intricado labirinto de realidade virtual. Um futuro possível, um futuro provável. Evidentemente nosso cérebro teria que dá um gigantesco saldo de processamento. Não é fácil viver num mundo em que realidade e ilusão caminham juntas, confundem-se e nos pastoreiam.